quinta-feira, 26 de março de 2009

Paródia e Paráfrase - Prof. Hélio Consolaro

Paródia e paráfrase
Marina Ferreira / Tânia Pellegrini *
TEXTO 1
Índia
Índia, seus cabelos nos ombros caídos,
Negros como a noite que não tem luar;
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar
Índia da pele morena,
Sua boca pequena
Eu quero beijar.
Índia, sangue tupi,
Tem o cheiro da flor
Vem, que eu quero lhe dar
Todo meu grande amor.
Quando eu for embora para bem distante,
E chegar a hora de dizer-lhe adeus,
Fica nos meus braços só mais um instante,
Deixa os meus lábios se unirem aos seus.
Índia, levarei saudade
Da felicidade
Que você me deu.
Índia, a sua imagem,
Sempre comigo vai;
Dentro do meu coração,
flor do meu Paraguai!
(J. A. Flores, M. O. Guerrero e José Fortuna. Sucessos inesquecíveis de Cascatinha e Inhana. Phonodisc, 1987.)

TEXTO 2
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. 1...]
Rumor suspeito quebra a harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
(José de Alencar. Iracema. São Paulo: Moderna, 1984. p. 11-2.)
TEXTO 3
A índia e o traficante
Noite malandra, um luar de espelho,
No meio da terra a índia colhe o brilho,
Som de suor, cheirada musical,
Palmeira que se verga em meio ao vendaval.
Sentia macia floresta,
Bolívia, montanha, seresta...
Índia “guajira” já colheu sua noite
Volta para a tribo meio injuriada,
Uma figueira numa encruzilhada
Felina, um olho de paixão danada,
Era Leão, famoso traficante,
Um outdoor, bandido elegante,
Que a levou para um apart-hotel
Que tem em Cuiabá.
Índia, na estrada, largou a tribo
Comprou um vestido, aprendeu a atirar,
Índia virada, alucinada pelo cara-pálida do Pantanal,
Índia “guajira” e o traficante
Loucos de amor, trocavam o seu mel,
Era um amor tipo 45,
E tiroteios rasgando vestidos,
Em quartos de motel.
Explode o amor, adiós para o pudor,
“Guajira” e o traficante passam a escancarar,
Rolam papéis, nos bares, nos bordéis,
Os dois de Bonnie and Clyde, assunto dos cordéis,
Maíra, pivete, amazônia,
Esqueceu Tupã, a sem-vergonha...
Dentro de um “Cessna”, bebendo “champagne”
Leão e seu bando a fazem sua chefona
Índia fichada, retrata falada,
A loto esperada pelos federais,
Mas ela gosta de fotografia
E vira capa dos jornais do dia,
Enquanto espera uma tonelada da pura alegria.
Índia, sujeira, foi dedurada
Por um sertanista que era amigo seu,
Índia traída — “mim tô passada” —
Ela lamentava num mau português.
A Índia, deu um ganho, num Landau negro,
Chapa oficial, que era da Funai,
Passou batido pela fronteira,
Uma rajada de metralhadora...
Morta no Paraguai!
(Eduardo Dusek e Luiz Carlos Góes. LP Dusek na sua. PolyGram, 1986.)
PARÁFRASE
Do grego para-phrasis (repetição de uma sentença), a paráfrase imita o original, in­clusive em extensão. Assim, parafrasear um texto é repeti-lo com outras palavras, mas sem alterar suas idéias.
Para produzir uma paráfrase, portanto, é preciso seguir as idéias do texto original, reproduzindo-as de outra maneira, mesmo que de forma resumida. O texto 1 (Índia) é
uma paráfrase do texto 2, de José de Alencar, produzido anteriormente àquele (no sécu­lo XIX), uma vez que repete a história de amor de uma índia meiga, bela e pura, compa­rando suas características físicas aos elementos da natureza. A diferença está na lingua­gem empregada — menos elaborada, na canção — e no foco narrativo (1ª e 3ª pessoas, respectivamente). Mantém-se, além da veneração pela mulher indígena, o amor poético daquele que vem de fora e lhe rouba o coração, partindo em seguida.
PARÓDIA
A paródia é uma recriação de caráter contestador: ela mantém algo da significação do texto primeiro, mas constrói todo um percurso de desvio em relação a ele, numa espé­cie de insubordinação crítica que incomoda.
Assim se comporta o texto 3, de Eduardo Dusek e Luiz Carlos Góes, que retoma o velho tema romântico do amor pela índia, interpretando-o às avessas: não há nenhum romantismo ou beleza, não há mais tribo, e Tupã foi esquecido. Nesse exercício há algo de novo, de desafiador. Com todas as inversões efetuadas, ocorre um desmonte das idealizações tão difundidas pela literatura do século XIX, dando lugar a uma situação presente bem afastada do nacionalismo romântico (outdoor, apart-hotel, champagne, avião, droga e submundo). Nesse parodiar, mantém-se o romance com o estrangeiro, no caso um traficante, e, em vez do abandono da índia, como na história original, ocorre seu assassi­nato. A referência ao filme Bonnie and Clyde (casal de assaltantes famoso na década de 1930 nos Estados Unidos), entre outras coisas, realça a realidade contemporânea, tão dominada pela cultura americana, e torna ainda mais distantes as raízes nacionais que Iracema representa.
* Redação - Palavra e Arte, Marina Ferreira e Tânia Pellegrini, São Paulo, Atual Editora, 1999 .

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